Herança e espiritualidade
Catherine Dolan e Ana Luísa Pinto, RSCM
Segundo o Evangelho de João (João 20: 11-18), Maria Madalena, estando de luto, vai ao túmulo, vê-o vazio, tira as suas conclusões e é confrontada com uma sensação de perda ainda mais profunda. Os anjos perguntam-lhe porque está a chorar. Estranha pergunta nessa circunstância, mas talvez seja para a despertar da dor para a reflexão sobre o que estava a acontecer, qual a razão do seu chorar. A pergunta e a sua resposta de que não sabia onde tinham colocado o seu Senhor fizeram-na perceber que não fazia sentido continuar a olhar para o túmulo, mas olhar à sua volta, olhar para fora a fim de conseguir encontrar onde ele estava.
Quando Maria se voltou, viu Jesus ali de pé, mas não sabia que era ele. Por isto: ela não procurava um Jesus vivo, mas sim um Jesus morto. Assim, não reconhecendo Jesus, continuou a chorar. Mesmo quando ele lhe falou, ela não o reconheceu, antes pediu-lhe ajuda pensando que era o jardineiro. Quando Jesus se dirige a Maria pelo seu nome, ela volta-se para ele, reconhece-o e, cheia de alegria, abraça-o. Ele diz-lhe que não o detenha, mas que vá, que leve a sua mensagem aos discípulos, e que partilhe com eles que ele ressuscitou. Então, Maria vai e anuncia a boa nova.
Esta é uma história de ressurreição que se repete constantemente nas nossas vidas – o reconhecimento da presença de Cristo em situações de escuridão e morte. Na nossa caminhada, cada um/a de nós terá sido confrontado/a com situações talvez de perda, de conflito, de frustração e de raiva, e podemos ter ficado tão perturbados/as que tudo o que podíamos ver era a situação. Tal como com Maria, precisamos de ser capazes de refletir sobre o que está a acontecer, e porque nos sentimos como nos sentimos, para que não sejamos sugados/as pelos nossos sentimentos, mas sim capazes de olhar para o exterior para aquilo a que estamos a ser chamados/as.
Em tais situações, temos a ajuda de temas dinâmicos ou características que nos foram transmitidas pelo nosso Fundador Jean Gailhac e pelas irmãs fundadoras. Gailhac enfatizou muito frequentemente a importância da docilidade ao Espírito Santo nas suas cartas às irmãs: “Encha-se todos os dias e cada vez mais do espírito de Deus. Conduza-se em tudo pelas inspirações que dele lhe vierem.” (GS/22/X/78/A*) Vemos isto afetar tanto a sua própria vida como a da comunidade primitiva que, muitas vezes, momentos importantes na história do nosso Instituto surgiram não através do planeamento mas através da abertura ao Espírito nos acontecimentos do tempo presente. Uma das nossas características como RSCM deveria ser esta capacidade de refletir sobre o que está realmente a acontecer, de estar abertas à ação do Espírito numa dada situação.
Com a intenção de Maria de encontrar o seu Senhor, podemos relacionar a ênfase que Gailhac coloca sobre a centralidade de Jesus Cristo nas nossas vidas. Com efeito, Gailhac coloca os fundamentos profundos do Instituto em Jesus Cristo. Uma e outra vez, ele lembra-nos do nosso chamamento: não basta estudar Jesus Cristo, não basta segui-lo ou mesmo amá-lo; é necessário ser um com Jesus Cristo vivo no presente, ser transformado/a nele, assumir as disposições interiores do Cristo vivo. A transformação em Jesus Cristo é central para a visão de Gailhac e para a nossa espiritualidade: “Formar Jesus Cristo plenamente em vós, viver de Jesus Cristo, ter uma mesma vida com Jesus Cristo, ser outro Jesus Cristo, é o fim da vossa corrida…”. (Ecrits, vol. 11, p. 3651). Como RSCM somos chamadas a integrar as nossas vidas centrando-as em Cristo, cujo amor em nós é a fonte da nossa fé e zelo. (Const. 9) É em Cristo, sendo um só com Ele, que testemunhamos a sua missão de “tornar Deus conhecido e amado”. As nossas Constituições expressam-no como total compromisso no seguimento de Jesus Cristo, transformação pessoal n’Ele e transformação do mundo. (Const. 2)
A capacidade de Maria Madalena reconhecer Jesus no jardineiro, de acreditar que esta pessoa aparentemente diferente era ele, exigiu um espírito de fé, que é tão essencial às nossas vidas e que nos ajuda a reconhecer a presença de Deus em pessoas e acontecimentos improváveis. Jesus Cristo presente no aqui e agora é central para a visão de Gailhac. Foi ao voltarem-se para Deus, como Gailhac tantas vezes disse e através da sua confiança na presença de Deus, que as jovens irmãs dos inícios da nossa história como Instituto foram capazes de fazer coisas que nos assombram, tais como viajar para países e mesmo novos continentes para estabelecer comunidades onde nunca tínhamos estado antes e onde tudo era estranho e desconhecido para elas.
É em momentos de ressurreição como este que experimentamos a verdade do que Gailhac escreveu à Madre Saint Jean no momento da fundação do Instituto, quando as irmãs estavam a experimentar rejeição e grande ansiedade: “Deus está connosco, portanto, também um pouco da sua cruz… Deus e Maria dar-lhe-ão coragem e seremos apoiados por Deus.” (GS/23/II/49/A*) A faceta mais clara de Cristo nas primeiras comunidades do IRSCM é precisamente o mistério pascal – a morte e ressurreição do Cristo vivo. O significado que Gailhac dá à participação no mistério pascal de Cristo é semelhante àquele a que Paulo se refere na sua carta aos Filipenses: “…para que eu possa conhecê-lo e o poder da sua ressurreição, e possa participar nos seus sofrimentos, tornando-me semelhante a ele na sua morte, para que, por todos os meios possíveis, eu possa alcançar a ressurreição dentre os mortos” (Filipenses 3, 10-11). Olhando para a caminhada da nossa história como Instituto, percebemos que as irmãs e as comunidades enfrentaram várias situações de Cruz, nunca desejadas ou procuradas. Pelo contrário, o mistério pascal estava presente na realidade, e foi reconhecido pelas irmãs como um sinal da presença de Cristo entre elas. Quase se tornou uma parte esperada da sua/nossa vida.
O envio de Maria Madalena, por Jesus, aos outros discípulos torna claro que ela deverá partilhar a notícia da ressurreição com outros, partilhar a boa-nova da vida em abundância. Lembra-nos a insistência de Gailhac de que devemos continuar a Obra de Cristo. Numa das suas cartas, escreve: “Deus chamou-as para O representar, para continuar a Sua Obra” (Ecrits, vol.13, p. 4759). É a isto que somos chamadas hoje. Nas palavras da nossa Declaração de Visão (2019 GC Doc.), “Somos chamadas a escutar o pulsar do coração de Jesus Cristo que encontramos, pessoalmente e como comunidade, nas várias dimensões da nossa vida, e a ser mulheres de paixão e compaixão, comunidades “em saída”, para proclamar a Boa Nova. Colaboramos com outros, caminhando juntas – mulheres de esperança profética que proclamam que todos têm lugar na nossa “casa comum”.