A Carta que não escrevi

Posted Janeiro 30, 2021

escrita por: Maria Antónia Quinteiro Lopes, rscm

Passaram mais de 200 anos após o meu nascimento! Dois séculos é muito tempo na perspectiva da história! No entanto, para mim tudo é presente. Vejo, com olhar diferente e inexprimível, a vida toda: luminosa, unificada, abrangente. Nada fica de fora! Espaço, tempo, pessoas, acontecimentos e opções enquadram-se num conjunto harmonioso que foi… que será …e que se impõe claramente como um aqui e agora, como algo que é.

Torna-se complicado perceber isto quando ainda se escreve a própria história aos bocadinhos, em espaços limitados, e se está exposta(o) à finitude de emoções, sentimentos, relações, factos e até, por vezes, dos sonhos. É como ver os retalhos separados de uma manta que se vai tecendo com os fios da VIDA.

Tenho essa experiência! Como sabem nasci em Murviel, França. Tive uma infância feliz, rodeada de afeto, de carinho e de todos os bens que uma criança pode ter no seio de uma família abastada e respeitadora dos valores cristãos. Muito nova, ainda, conheci o meu futuro marido, Eugène Cure. Um rapaz maravilhoso, oriundo de Autignac, uma pequena povoação perto de Murviel. Os nossos pais eram amigos entre si e desejavam ardentemente unir as duas famílias pelo nosso casamento. Eu simpatizei muito com Eugène e vim mesmo a apaixonar-me.

Entretanto, uma nuvem bem negra surgiu no meio de tanta felicidade. Os meus pais morreram os dois num curto espaço de tempo. O mundo parecia desabar sobre mim! À minha profunda tristeza juntou-se um ambiente tremendamente hostil criado pelo meu irmão mais velho e pelo meu tio. Não apoiavam o meu casamento. Temiam que a minha herança fosse parar às mãos de Eugène. O meu irmão chegou mesmo a prejudicar-me. Eugène, sendo advogado, esteve sempre ao meu lado e deu-me segurança não só com o seu saber, mas sobretudo com o seu verdadeiro amor. Viemos a casar com total separação de bens, tendo o cuidado, mais tarde, de fazermos testamento um ao outro.

Uma nova e esperançosa página se abriu no meu livro a escrever com pequenos pedaços de vida. O amor, a ternura, a coragem de viver, a sensibilidade forte aos que mais precisavam, e eram muitos nessa altura, cimentaram a nossa união, a nossa felicidade e a nossa fé. Vivemos algum tempo em Autignac, indo depois para Béziers. Eugène exercia a sua profissão. Eu procurava desempenhar, o melhor possível, o meu papel de esposa. Acolhia com agrado os amigos do meu marido, participava em tudo o que a minha posição social me exigia e estava atenta àqueles que, sendo pobres, sabiam que ali encontravam ajuda. Sempre me impressionou a situação de um sub- mundo estranho e triste que vagueava pelas ruas de Béziers.

Entre as pessoas que frequentavam a nossa casa, distinguia-se o grande amigo de Eugène, o P. Jean Gailhac. Conheceram-se no colégio e mantiveram sempre uma profunda amizade que me contagiou também. Era um prazer para nós vê-lo entrar bem- disposto, falando com entusiasmo da sua acção apostólica. Nem tudo eram rosas! As dificuldades eram muitas e diversificadas! O parco ordenado que tinha não lhe permitia realizar os grandes sonhos que acalentava!

E nós íamos sonhando com ele! Não tínhamos filhos… quem sabe o que Deus esperaria de nós? Porque não ajudar Jean Gailhac nos seus belos e ousados projetos? Perguntas que se fizeram respostas generosas e oportunas. A cada necessidade, a cada sinal … e se podíamos… devíamos responder. Era esse o nosso modo de pensar e atuar. Sentimos a chama da fé de Gailhac, o calor do seu zelo e “embarcámos” nos seus sonhos. Foi um tempo verdadeiramente feliz e comprometido!… Criámos laços de amizade muito mais fortes. Com ele formávamos, de facto, uma família.

Vinte anos passados e outra página se abriu. Era necessário escrevê-la, mesmo com dor. O meu marido faleceu. Não tendo filhos, e sem o apoio dos familiares, senti-me num túnel escuro sem vislumbrar saída… Restava-me a fé e aquele que foi sempre o nosso companheiro de viagem – o P. Jean Gailhac – então muito envolvido nos seus queridos projetos. Ele sempre nos ajudou a olhar de frente a vida e a confiar sem medida no amor de Deus. Mas, neste momento tão difícil, eu senti que Deus me tocava de modo diferente na incansável dedicação de Jean Gailhac. Pensava para comigo de onde lhe vinha tanta ternura… e só mais tarde percebi que é Deus a verdadeira fonte de bondade e ternura. E Gailhac era realmente uma pessoa de Deus! Pude confiar-lhe a minha dor, os meus receios, a saudade imensa do meu marido, a minha gratidão. Eram diálogos que me confortavam e me desinstalavam… Se a crise era grande, maior era o apelo contínuo de Deus. Talvez fosse aquela a hora de iniciar mais uma página…E foi! Deus tem esta forma de agir aparentemente desconcertante. Precisava de mim junto das jovens e crianças, também elas carentes de afecto e de tudo. Era o momento de lhe dizer um SIM sem reservas, entregar-me para servir incondicionalmente. Dei-me e dei o que possuía! “A coragem nunca me faltou” bem como o desejo de amar somente Deus e todos aqueles que Ele me confiasse. Longa e penosa caminhada onde se misturou a saudade e a tristeza da perda, com a alegria e o entusiasmo de quem avança com firmeza e sabe para onde vai. O P. Gailhac “foi meu pai e minha mãe” acompanhando, como os meus pais o haviam feito outrora, os sorrisos, desafios e medos neste novo iniciar…

O resto conhecem-no bem!… Fui Religiosa do Sagrado Coração de Maria. Estive no início desta corrente, à qual pertenço e na qual vivo. Não morri, nasci de novo! Em Deus gozo a totalidade do dom, da vida, da unidade. N’Ele vos encontro e contemplo como rosto, mãos, pés e coração de Deus… lutando, construindo, tecendo a VIDA, o AMOR, a JUSTIÇA, a PAZ, nesse mundo diferente do meu, com outros apelos e sinais. Tecei bem novos retalhos da manta, iniciada com tanto amor. “Deus assim o quer”!

Appolonie Pélissier Cure
(Madre Saint Jean)

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